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Sobrevivendo à pandemia e aos (des)governos

Por Wellington Castro/NPC (*)

O Brasil vive o maior desafio sanitário dos últimos 100 anos: a pandemia do vírus Sars-Cov-2, mais conhecido como coronavírus. Atualmente a marca ultrapassa 554.924 mortes em todo o mundo, havendo só no Brasil 69.254 mortes por coronavírus confirmadas até as 22h da quinta-feira (9), segundo levantamento feito pelo consórcio de veículos de imprensa a partir de dados das secretarias estaduais de Saúde. São 1.759.103 casos confirmados no país. Houve um aumento de 42.619 casos em 24 horas.


O Brasil está na segunda posição em número de mortes pelo vírus, atrás apenas dos Estados Unidos.


O mundo movimenta laboratórios de todas as partes. Pesquisas buscam a cura através da vacina. Enquanto isso, a ganância da indústria farmacêutica se aproveita para lucrar com remédios que amenizem os sintomas. Como foi o caso da irresponsabilidade dos dois presidentes dos países mais atingidos pelo vírus, Trump e Bolsonaro. Há pouco tempo ambos enalteciam a utilização de comprimidos a base de cloroquina. Medida que segundo a Organização Mundial de saúde (OMS) não é recomendada devido aos efeitos colaterais do medicamento que podem levar à morte.


Os presidentes dos Estados Unidos e do Brasil chegaram a se contrapor à Organização Mundial da Saúde: Trump cortou relações com a OMS; e Bolsonaro, por sua vez, desafiou as recomendações da OMS, se contrapondo inclusive aos ministros do próprio governo. O Ministério da Saúde sofreu duas baixas por conta da insistência do presidente em estimular e oficializar o uso da cloroquina.


Também sem acordo com os demais governos estaduais, o governo federal abriu conflitos políticos em diversas áreas e por todos os lugares contra aqueles que contrariassem o seu comportamento. Foram várias menções desastrosas. Além das brigas com a mídia.

A obtenção do auxílio emergencial prestado pelo Governo Federal se tornou uma árdua luta pela sobrevivência. O governo, de início, propôs a quantia de R$200,00 mensais, durante três meses. Mas, graças à intervenção do Congresso Nacional, foi aprovado o valor de R$600,00. Entretanto, nem todos puderam ou conseguiram o auxílio. Por causa de muitas precariedades da sociedade, entre elas o analfabetismo digital, muitos ficaram sem registros. Quem enfrentou filas imensas, chegando a acampar na frente dos bancos da Caixa econômica Federal (CEF), não entendia o porquê de o sistema informar sempre que os pedidos estavam “em análise”.


Os empresários, parceiros de campanha do presidente, se enfureceram com as recomendações da OMS, aos berros, eles pressionaram o governo para a reabertura do comércio. E conseguiram.


O coletivo Lata-Doida

A ajuda aos necessitados chegou mesmo através da auto-organização de grupos em bairros e favelas que fazem seus trabalhos comprometidas com a horizontalidade das causas sociais.

Esse é o caso dos voluntários do Lata Doida, uma organização não-governamental de Realengo que desempenha tarefas importantes na área da cultura e da sustentabilidade ambiental. Fundado em 1o de janeiro de 2007, o grupo tem como missão “colaborar para a construção de um mundo sustentável e sensível à arte”. A agenda de trabalho do Lata Doida, quando não produz shows com sua banda, vai desde oficinas de artesanatos, à produção de sabão por meio sustentável, passando pela compostagem comunitária, além de reivindicar causas como o Parque de Realengo Verde, juntamente, com o Parquinho Verde, e o grupo de Mulheres do fim do mundo.


O nome Lata Doida surgiu com a oficina de música que deu origem ao grupo e que utilizava instrumentos musicais feitos artesanalmente com material descartado, como latas, garrafas PET, tábuas, caixotes de madeira etc. Assim, sustentabilidade e arte sempre andaram de mãos dadas no Lata Doida.


Um exemplo da diversidade de atuação do coletivo foi a produção do curta-metragem Chapeuzinho Verde na Mata Atlântica, lançado em março de 2017 na Cinemateca do Museu de Arte Moderna do Rio (MAN). O filme é um grito em defesa do meio-ambiente, e sua heroína, Chapeuzinho Verde, uma moradora da Zona Oeste do Rio que defende a mata do Maciço da Pedra Branca.


Com a pandemia as atividades do grupo pararam e as tarefas foram direcionadas para a solidariedade com os moradores da região. Durante a quarentena o Lata Doida contou com importante apoio dos amigos Marcele e Vitor da Casa Fluminense. A instituição disponibilizou cerca de 1000 bolsas, centenas de kits higiênicos e produtos de limpeza através da campanha Rio Contra o Corona.


O cofundador do grupo, Vandré Nascimento, 32, professor de geografia e músico-ativista do Lata Doida, realça a importância do trabalho político: “a gente precisa se mobilizar com ações solidárias, mas também precisa agir politicamente. Somente com as ações solidárias, a gente não consegue combater o problema mais próximo da raiz”.

Ele também conta que houve a ajuda de outros parceiros, a quem se solidarizou com a distribuição de cestas e kits. O apoio recebido por demais parceiros criou raízes, se juntando a outras articulações, como a favela do Muquiço, em Deodoro, e o bairro de Santa Margarida, em Campo Grande, como vamos ver nessa reportagem.

Conheça o Lata Doida:

Coletivo “Fazer o bem sem olhar a quem”

Falar do Muquiço em Deodoro, é lembrar-se do histórico de descaso por parte do poder público”, ressalta Edmilson, 39, assistente social e fundador do Centro Sociocultural da favela do Muquiço.

A ação popular na favela do Muquiço surgiu da relação de reciprocidade, que é a própria essência da vida comunitária entre os moradores nas favelas cariocas. Desde a enchente ocorrida no mês de março, moradores esperam pelo poder público, em vão. Os moradores precisaram encarar a realidade de mãos e braços dados sozinhos. E sabendo de seus direitos, eles denunciam o descaso do estado e do município, cobrando soluções e políticas públicas para a localidade. Faltam materiais e equipamentos para a manutenção do espaço público, na favela. Se não fosse a solidariedade das ações em conjunto dos moradores, muitas famílias estariam desamparadas.

Mas foi na união e afeto de um grupo que se organizou para enfrentar os problemas causados pela chuva que nasceu o coletivo Fazer o bem sem olhar a quem. Através da ação do grupo, eles conseguiram arrecadar cerca de R$4.000,00, mais cestas básicas e kits de limpeza. Com este valor, foi possível também ajudar moradores de outras localidades, como foi o caso de cidades, situadas na Baixada Fluminense: Mesquita, São João de Miriti, Duque de Caxias, Nova Iguaçu e Magé. Tudo isso aconteceu graças à campanha do grupo que buscou apoio dos comerciantes do Muquiço e do Coletivo Lata Doida, em Realengo.

Outra atividade importante do coletivo foi o cadastramento das pessoas, com dificuldade de acesso ao site do governo federal para o benefício do auxílio emergencial durante a pandemia do coronavírus.

Edmilson explica que o cadastramento foi muito mais do que um ato de caridade. “Estamos cientes da nossa obrigação de contribuir com o próximo no acesso aos seus direitos fundamentais previstos na Constituição Federal: saúde, educação, moradia, trabalho, previdência social, assistência e alimentação”. E completa: “temos a esperança que atitudes individuais e coletivas como essas sejam caminhos possíveis para o fortalecimento da favela e da sociedade em geral”.

O crime de 2019

A favela do Muquiço foi vítima de um crime de Estado, em maio de 2019. Na ocasião, militares do Exército Brasileiro, em exercício na favela, dispararam nada mais, nada menos que 80 tiros contra o carro de uma família. Os tiros custaram a vida do músico Evaldo Rosa e do catador Luciano Macedo, que tentou salvá-los. Os militares estão soltos, respondendo livres ao inquérito. Episódios violentos como esse ocorrem constantemente nas favelas do Rio de Janeiro.

Campo Grande é assim: Coletivo de Educação e Cultura “Margarida Maria Alves” atua na assistência aos necessitados

Tudo começou com a insatisfação causada pelos amontoados de lixo espalhados pelas esquinas do bairro. Em Santa Margarida, um cantinho do imenso Campo Grande, Zona Oeste do Rio de Janeiro, voluntários se reúnem de 15 em 15 dias e organizam um mutirão de pessoas dispostas a limpar, pintar, plantar, dar novo ares a comunidade.

Os trabalhos se iniciam com a confraternização, de uma deliciosa mesa de café da manhã, reunindo o coletivo. Tanta generosidade não poderia ter outra consequência: a participação de outros moradores do bairro. Que em um alcançaram o resultado esperado: esquinas das ruas limpas, canteiros bem cuidados, a praça mais verde e florida; enfim, tudo muito limpo e cuidado, num clima favorável para qualidade de vida saudável e alegre.

Paulo Gomes Coutinho, 58, professor de Filosofia, é um dos organizadores desse grupo de moradores, chamado de Coletivo Margarida Maria Alves. O nome é uma homenagem à sindicalista e defensora dos direitos humanos alagoana, Margarida Maria, assassinada em 1983. Gomes ainda é responsável pelo funcionamento de um cineclube do bairro, que também faz parte das atividades do Coletivo Margarida Maria Alves.


"A situação do vírus não será superada imediatamente. Então a percepção é de que esse cenário de miserabilidade, invisibilidade e de necessidade vai permanecer. E, se permanecer e ficar só na entrega das cestas, vai ser "enxugar gelo". Então vai ter que ser uma ação de solidariedade. Uma ação de assistência imediata. Vai ter que estar "colada", com a perspectiva de superação dessa sociedade", diz Paulo.


Ou seja. Superação dessa sociedade capitalista. Individualista.


Mas não é tudo. O professor e sua companheira, Fátima Maria, desenvolvem o programa Educação Popular Margarida Maria Alves, um cursinho pré-vestibular que funciona na Paróquia São José e prepara estudantes do ensino médio da comunidade para vestibulares e provas de seleção para o ingresso nas universidades.

As ações durante a pandemia


O amigo e vizinho Aldair Sales, professor de Educação Física, também participa do coletivo. Antes da pandemia, Aldair promovia uma atividade de dança, chamada de Forró da Caixinha, em uma praça do bairro. Ele levava uma caixinha de som para o local, e as pessoas se juntavam para dançar e contribuíam como quisessem.

Durante a atividade, Aldair propôs uma caixinha do forró para os moradores mais necessitados da região. Foi assim que o Forró passou a ajudar e surgiu a Caixinha Solidária do Coletivo Margarida Maria Alves.


Um cadastro de moradores da comunidade foi organizado e o dinheiro investido em cestas básicas. Analisando o perfil dos cadastrados, o coletivo se deu conta de que muitas famílias em necessidade eram de mulheres, muitas delas, chefes de família, em casas onde chegava a cinco ou seis pessoas dependentes. São avós, mães, filhas e filhos sem emprego. Mulheres também vítima do machismo. É a nova configuração familiar, monoparental.

O coletivo se surpreendeu na hora dos cadastros ao ver tanta gente desassistida.

A iniciativa foi muito importante para o desempenho do coletivo, que se tornou uma referência para outros grupos, como conta o professor: “o Vandré Nascimento, que dá aula comigo numa escola me ligou, oferecendo 50 cestas do projeto dele, Lata Doida”. O Coletivo Margarida Maria Alves distribuiu todas elas, bem como as cestas básicas também doadas por outra organização, a Teia de Mulheres da Zona Oeste.

Esperamos mesmo quando a crise causada pelo coronavírus passar, a intenção é dar continuidade às iniciativas surgidas para minimizar os efeitos sociais da quarentena e do isolamento social. Quando encerrar a campanha de caridade da Rio Contra o Covid, o coletivo se mobiliza, com a expectativa de uma proposta que vá além desta caridade: “O Covid veio mostrar pra gente o abandono em que vivemos. Veio mostrar pra gente a indigência em que a população é jogada. Veio mostrar pra gente que essa população não confia nas autoridades. Essa gente que está na rua, em algumas semanas, vai ser com certeza o futuro doente, o futuro necessitado dos respiradores”.


Gomes concorda que é preciso dar uma assistência imediata aos que precisam, aos abandonados pelo Estado e pela sociedade brasileira, mas ao mesmo tempo afirma que é preciso construir uma outra sociedade justa e igual:

— “A cesta básica está aqui, porque o Estado não está. A cesta básica está aqui, porque isso é um trabalho solidário. A cesta básica está aqui, porque a gente pode morrer. A gente tem que sobreviver para poder ter uma vida diferente. A gente quer você vivo para estar conosco mais à frente, lutando por uma sociedade melhor”, conclui.

(*) Wellington Castro faz parte da Rede de Comunicadores do NPC.

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