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O confronto no morro do São Carlos contado por quem vive: o relato de uma favelada

Oito comunidades da região têm sofrido com tiroteios diários desde quarta-feira (26/08)


Desde quarta-feira (26/08), quando o confronto no Complexo do São Carlos teve início, tiros têm sido ouvidos diariamente na região. O cerco da Polícia Militar no entorno das favelas invadidas e também naquelas de onde teria partido a invasão não tranquiliza os moradores, pelo contrário. O favelado sabe que a presença de policiais representa a possibilidade de um confronto a qualquer momento.

Por Jaqueline Suarez/NPC – 30.08.2020


Quem reside nos bairros do Estácio, Rio Comprido, Catumbi e Santa Teresa está assustado. Quem vive nas comunidades do Fallet, Fogueteiro, Prazeres, Mineira, Coroa, Querosene, Zinco e São Carlos está sitiado. As ruas desertas e silenciosas enviam uma mensagem clara de perigo, de instabilidade e tensão. Para sair de casa é preciso carregar na bolsa um plano B, para ter onde dormir caso não dê para retornar. Isso é algo que se aprende desde muito cedo em qualquer favela do Rio. “Se não der pra voltar, pode dormir lá em casa!”, é uma frase que ouvimos com frequência.


A possibilidade de um confronto a qualquer momento faz com que as pessoas sintam medo de ir trabalhar, de ir ao supermercado ou ao médico. Mas, infelizmente, muitas pessoas não podem escolher não sair. A preocupação é se o tiroteio vai começar com você saindo ou chegando, no caminho, sem onde buscar abrigo para se proteger. Essa insegurança me fez desistir de voltar para casa. Por sorte, pude fazer essa escolha.


Eu estava na casa do meu noivo, em Laranjeiras, zona sul da cidade, quando minha mãe me ligou para avisar do tiroteio. Na hora só consegui lamentar a perda da tranquilidade que já durava uns bons meses. Parece pouco, mas a normalidade de uma vida sem violência é algo fácil de acostumar. Quando algo dessa proporção acontece, a gente sabe que uma resposta ainda mais violenta virá. A questão sempre é quem ela irá atingir.


Na quarta (26) Ana Cristina da Silva, de 25 anos, moradora do São Carlos foi morta ao tentar proteger o filho pequeno dos tiros. Na madrugada de quinta-feira (27), Sebastião Braga, de 54 anos, foi ferido durante uma invasão ao prédio em que trabalha como porteiro, no Rio Comprido. No mesmo dia outra residência foi invadida, mas ninguém se feriu. Denúncias sobre invasões também aconteceram por parte dos moradores da favela do São Carlos. Mas no caso deles, os invasores seriam policiais que estariam arrombando as portas de várias casas.


O medo de ter sua casa invadida e até furtada durante operações policiais é algo comum nas favelas do Rio. Lembro de uma vez que acordei com um policial batendo na janela de casa. Levei alguns minutos para entender o que estava acontecendo. Eu era bem novinha e meu primeiro pensamento foi ver meu cachorro. O portão do quintal estava totalmente aberto e, por sorte, eles só espantaram o animal para fora. Quando o cachorro late muito ou ameaça morder, eles costumam atirar. Isso já aconteceu com alguns vizinhos.


Eu moro na comunidade do Fallet, desde que nasci (26 anos). Já perdi as contas de quantas vezes saí da escola debaixo de tiroteio. Quando tinha operação policial, os carros ficavam estacionados em frente ao colégio, às vezes os policiais trocavam tiros dali mesmo. Invasões como essa já vivenciei muitas. Não me recordo de a polícia intervir antes que elas acontecessem; é sempre depois. Por isso, a fala de um delegado na TV dizendo que o Estado foi impedido de agir me soa tão falsa.


Como favelada e jornalista formada, a primeira da família a conseguir acesso ao ensino superior, sei bem que aquela entrevista não foi ao ar à toa. Recentemente, uma liminar do Supremo Tribunal Federal proibiu a realização de operações policiais durante a pandemia. Uma conquista histórica dos movimentos de favelas, que provocou uma redução de 70% no número de mortes em toda a região metropolitana do Estado. Os dados são do Grupo de Estudos de Novos Ilegalismos (GINI), da Universidade Federal Fluminense (UFF).


O problema das notícias é que elas são sempre de baixo para cima, do asfalto para o morro. Contam muito pouco sobre os impactos que a violência causa na vida de quem vive nas favelas, onde os confrontos realmente acontecem. Quanto os tiroteios começam a gente só consegue torcer para que nenhuma bala atravesse nossa casa e, principalmente, nossos corpos. Todo favelado sabe qual é a parede mais resistente de sua casa, é uma necessidade de sobrevivência. Nesse cenário, uma casa arrombada, uma janela quebrada ou a rede de luz e internet destruídas parece algo pequeno perto de tanto que nós temos a perder: a vida.


Episódios como esse me fazem lembrar que o direito à vida que eu experimento quando estou na casa do meu noivo, na zona sul da cidade, não é o mesmo que eu acesso quando estou na minha própria casa, no morro do Fallet. Depois de quatro dias longe de casa, amanhã eu volto. A nós, moradores, só resta a torcida por uma trégua que nos permita transitar onde vivemos sem colocar nossa vida em risco.


[Jaqueline Suarez faz parte da Rede de Comunicadores do NPC]



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