Por Carolina Vaz / Fotos de Aline Macedo - Jornal O Cidadão
Com informações de Antônio Carlos Pinto Vieira, Marilene Nunes, Tainara Amorim, Jornal O Cidadão edições 29 e 47, e revista Diálogo Urbano
Quem conhece a história da Maré sabe o quanto esse conjunto de favelas já resistiu às ações de remoção e à omissão do Estado. Essa resistência, que vem de décadas, tem muitos nomes e sobrenomes. Um deles é de Atanásio Amorim, também chamado só de Seu Atanásio, morador da Baixa do Sapateiro, que nos deixou no dia 25 de abril, vítima de Coronavírus. Seu Atanásio era alfaiate, carregava um passado de muita luta pela Maré, desde a época das palafitas, e foi um amigo e colaborador do Museu da Maré desde sua fundação.
Nordestino, alfaiate e, principalmente, lutador
Atanásio Amorim, nascido em 1930, aos 23 anos veio de Codó, no Maranhão, para o Rio de Janeiro no porão do navio Ita, que trazia nordestinos para a capital do país. Foi morar na Baixa do Sapateiro, favela da Maré, trabalhando como alfaiate. Vivenciou a coexistência entre as casas de palafitas, as precárias moradias acima da maré da Baía de Guanabara, e as casas em solo que se multiplicavam. No ano de 1967, assumiu a presidência da Associação de Moradores da Baixa do Sapateiro, uma das primeiras associações do país.
Seu Atanásio foi o protagonista de uma história conhecida até hoje como “tira-cercas”. Visualizando a abertura de ruas e calçadas na Baixa, ele decidiu retirar as cercas que demarcavam os terrenos na favela. Nem todo mundo apoiou, mas seu Atanásio foi atrás das autoridades e acabou recebendo autorização da Região Administrativa. A favela se mobilizou na auto urbanização de sua área e em pouco tempo foram abertos trechos de ruas até hoje muito utilizadas, como Nova Jerusalém e Nova Canaã. Carros e pessoas passaram a circular melhor desde então.
O presidente da associação também lutou contra diversos projetos do Estado que poderiam retirar ou deslocar moradores. Numa das vezes, ele reagiu a um boletim do Instituto Nacional de Previdência Social (INPS) que reivindicava a área da Baixa do Sapateiro como pertencente à União. Procurou as autoridades e contestou o documento, evitando a remoção dos mareenses. Em 1979, quando seria implantada a Linha Vermelha, ele lutou contra o projeto de seu traçado, que pegava parte da favela (e assim expulsaria moradores), e conseguiu desviar a construção da via. Outra ação na qual ele foi fundamental foi a organização de diversas lideranças da Maré contra o Projeto Rio, um plano do Ministério do Interior, também de 1979, que levaria a aterros na Baía de Guanabara, removendo as favelas e instalando condomínios para a classe média, indústrias e outros empreendimentos. Ele convocou outros líderes e conversou com as autoridades, evitando essas ações. Nessa ocasião foi formada a Comissão de Defesa das Favelas da Maré (Codefam), que passou a lutar pela permanência das favelas. “Se hoje a Maré existe como um bairro, urbanizado, a gente deve muito a esse movimento, do qual também participaram Agamenon, Seu Manuelino, Seu Pedro Rufino…”, conta Carlinhos, do Museu da Maré.
Outro momento que ele protagonizou foi, em 1977, quando foram inauguradas as caixas d’água na Baixa do Sapateiro, um evento que contou com a presença do governador, jornalistas e milhares de moradores. Seu Atanásio ainda participou das Comissões de Luz: organizações de moradores que estabeleceram a eletrificação das casas, negociando com a Light e organizando a cobrança.
Além de todas as ações internas, ele ainda era um porta-voz da Maré em eventos e organizações da cidade em geral. Participou do Congresso de Favelas de 1965 e da criação da Federação de Favelas do Estado do Rio de Janeiro (FAFERJ).
“Ele viu a Maré crescer e ajudou nesse crescimento”
O relato é de Tainara de Oliveira Amorim, filha de Seu Atanásio. Para ela, a Maré também era como uma filha para o alfaiate. Ela mesma cresceu ciente da importância do seu pai na história da favela, e conta que já utilizou documentos e fotos guardados por Atanásio para trabalhos de escola, quando criança. “Conforme eu ia crescendo eu ouvia que meu pai era uma pessoa importante, e como eu tenho uma veia de historiadora, desde pequena eu perguntava para ele desses feitos… E ficava exibindo para todo mundo na escola que meu pai era importante”, conta.
Tainara, hoje, mora no Conjunto Esperança, na Maré, e é estudante de História na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Para ela, a herança deixada pelo pai fica marcada na história da Maré: “Ele deixa como legado a força que ele tinha na luta pelos direitos, porque ele nunca desistiu de lutar pela Maré, não importava qual era a situação. Por pouco os moradores da maré não foram removidos, e ele entrou nessa luta na época e não deixou que a Maré deixasse de existir”.
Símbolo de Memória
Seu Atanásio ainda era um grande amigo e frequentador do Museu da Maré. Na verdade, ele compartilhou do sonho da construção desse museu: participou de uma reunião feita com moradores antigos e algumas lideranças da Maré antes da criação do Museu. E estava lá em sua inauguração, em 2006, e no mesmo ano, já com mais de 70 anos, acompanhou a equipe do Museu para receber a Medalha de Honra ao Mérito Cultural em Brasília. Na verdade, sem ele o Museu não seria o mesmo: são doações do alfaiate alguns objetos em exposição, como máquina de costura, régua de modelagem, moldes e uma latinha com botões. Estão lá, na exposição fixa do Museu, entre o Tempo da Feira e o Tempo do Cotidiano.
Carregando mais de 60 anos de história mareense, era presença certa no evento anual do Chá de Memórias do Museu, compartilhando não somente pela oralidade mas pelos documentos que levava da sua época de liderança. “No Chá de Memórias ele não faltava um, e nos próximos que virão fará muita falta, pois sua participação e sua fala atravessavam o passado, davam uma parada no presente para tirar de dentro de sua pastinha, que carregava sempre, várias vivências do passado: documentos e recortes de jornais que contavam um pouco a sua trajetória de vida na Maré”, relata Marilene Nunes, coordenadora da Biblioteca Elias José e da Brinquedoteca Marielle Franco, do Museu.
“Ele deixa o legado de um homem comum, alfaiate, nordestino, migrante, que constrói sua vida a partir da sua profissão mas também da sua atuação política. É uma grande figura que deixa um grande legado para essa comunidade, e que nos diz que é possível sair do individual para o coletivo e dar uma contribuição”
(Carlinhos, do Museu da Maré)
“De hoje em diante, no nosso Chá de Memórias estará sempre faltando uma pessoa, uma xícara a mais ficará na mesa para lembrarmos com muito carinho e saudade desse que sempre participou e contribuiu com muitas falas para a nossa atividade”
(Marilene Nunes)
“Eu olho para as histórias do meu pai como uma criança lendo quadrinhos… como o herói que sempre chega na hora certa, tem dificuldades, mas no fim acaba salvando o mundo”
(Tainara Amorim)
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