Da voz de Maria aos corpos de João a João...
- NPC
- 29 de mai. de 2020
- 7 min de leitura
O genocídio dos negros e pobres nas favelas do Rio de Janeiro não dá trégua, mesmo diante da pandemia.

Por Tatiana Lima/NPC
É o que se conclui da nota enviada à imprensa pela Polícia Militar em que afirmava: “antes e durante a pandemia provocada pelo novo coronavírus, as atividades operacionais da Corporação de enfrentamento ao crime organizado não sofreram alterações. O número de operações mensais no primeiro quadrimestre deste ano, sempre planejadas com informações da área de inteligência, manteve-se no mesmo patamar”.
De fato, o Estado interrompeu somente na última semana quatro ações comunitárias de ajuda às vítimas da pandemia e matou 17 pessoas, escancarando a opção política do governo para as favelas: a morte, seja a tiros de fuzil 7.62mm, seja pelo stress e angústia ocasionados pela violência policial ou seja pela falta de acesso à saúde pública e vulnerabilidade social, e agora também pela Covid-19.
Faltam testes, tomógrafo, leitos com respiradores para pacientes com suspeita de Coronavírus nas Clínicas da Família e Upas das favelas, mas sobram balas. É o que dizem os relatos dos moradores da Cidade de Deus, Acari e Complexo do Alemão, e o que denunciam o relatório do Observatório de Segurança e os registros do aplicativo Fogo Cruzado.
— "Eu não aguento mais só sobreviver. A gente não tem direito de viver. A gente não tem direito de entregar comida. A gente não tem direito de cuidar dos nossos. A gente não tem direito a nada!”, desabafou aos prantos, Jota Marques, ativista da Frente CDD e conselheiro tutelar, sobre a morte de um jovem chamado João Vitor, morador da favela, ao vivo em uma live no Instagram, em 20 de maio.
Chove na cidade do Rio de Janeiro...
Mesmo faltando tudo, moradores da cidade já acordam ao som do despertador de pobre: rajadas de tiros de fuzil 7.62mm. Eram 6h01 da sexta-feira, dia 15 de maio, quando Maria, moradora Nova Brasília, uma das favelas do Complexo do Alemão, acordou. Ela não tem sem coragem de chegar à janela, mas ouve a gritaria: “Vai morrer! Vai morrer!”, junto com o estampido de tiros, barulho de vidros quebrando, batidas de carros, concreto sendo arrastado.
— “A gente aqui ouve tudo. Você não pode chegar perto das pessoas, não pode fazer nada. Você assiste à morte do outro de perto. Você ouve ele morrer... e aí, você morre junto, porque uma parte sua não volta. Não é a primeira vez que isso acontece aqui, mas eu não aguento mais”, desabafa a moradora, com voz embargada e chorando.
Desde 5h30, o Batalhão de Operações Especiais (Bope) da PMERJ e da Coordenadoria de Recursos Especiais (Core) da Polícia Civil, invadiam quatro favelas do conjunto do Complexo do Alemão: Nova Brasília, Loteamento, Alvorada e Fazendinha.
Maria chama o filho para se esconder junto com ela no banheiro; o marido e o cachorro já estão lá. “As pessoas já estão preocupadas com suas famílias por causa do coronavírus. Aí, eles ainda fazem isso? Deixam todo mundo estressado aqui... Eles entraram na casa dos outros, bateram em gente na frente de criança. Isso não é coisa de gente normal”, acusa.
No Beco do Escadão, na favela da Alvorada, moradores contabilizaram mais 90 cápsulas de fuzil no chão. Muros de casas, portas e paredes estão quebrados e caixas d’água furadas à bala. A operação interrompeu a distribuição de cestas básicas que seria feita pelo Gabinete de Crise do Complexo do Alemão, formado por ativistas, moradores, lideranças e comunicadores populares.
“Eu não aguento mais isso. Eles entram assim, quebrando, atirando, interrompendo tudo. Quem não tem nada a ver com isso, sofre. Eles pensam que favela é o quê? Eu não posso postar, não posso ir pra rua, não posso fazer nada. Mas, ouço os gritos. É uma tortura! Isso não é papel da polícia. A gente tem pena de morte aqui?”, questiona Maria.
A “megaoperação de inteligência”, conforme foi nomeada pela polícia e pela mídia comercial, deixou 13 mortes no Complexo do Alemão, em meio à pandemia do Covid-19. Devido aos disparos em transformadores, quatro favelas da comunidade ficaram sem luz por mais de 24 horas. Moradores temiam que a polícia voltasse e fizesse outra operação aproveitando a falta de energia.
“Tem muita gente machucada aqui. Gente que não estava envolvida com o tráfico. Estava indo trabalhar, mas só porque estava de calça, casaco e mochila, eles acharam que era bandido e faziam maldade com os outros”, denuncia Maria.
Outra moradora de Fazendinha, que pediu para não ter o nome divulgado, denunciou também não só espancamentos, mas que policiais estavam encapuzados, invadindo casas e torturando pessoas a facadas. João, outro morador de lá, contou que “foi muita granada. Tudo explodia. Se você não morre de corona, morre de susto ou à bala”.
“A pessoa já tem que ficar dentro de casa por causa da pandemia. E ainda não pode ficar aglomerado dentro de casa se tiver com algum sintoma para não contaminar a família. Aí, do nada, vem a polícia e começa um tiroteio. Não tem lugar seguro para se proteger. A gente vai para trás da geladeira! Mas, quantas geladeiras você acha que existem dentro de uma casa? Uma só!”, explica João.
“A gente não tem direito nem a isso, nem a ficar dentro de casa! Isolamento não existe na favela. Até porque, quando se tenta, a polícia não deixa!”, conclui.
A operação policial em meio à pandemia de Covid-19 revoltou os moradores da comunidade. Mesmo debaixo de chuva, usando máscaras, desceram becos e vielas, carregando, eles mesmos, os cadáveres enrolados em lençóis e papelão até a entrada da favela de Nova Brasília. A primeira comunicação da Polícia Militar à imprensa foi desmentida ali. Ao contrário do que afirmava a nota da corporação, a operação policial não tinha deixado apenas um policial ferido com estilhaços no rosto e apreendido 8 fuzis, drogas e munições. Com os cadáveres expostos na movimentada Avenida Itaoca, a principal do bairro, os moradores denunciavam ao menos cinco mortes.
Familiares dos jovens chegavam e se desesperavam. A polícia precisou interromper o trânsito da Avenida Itaoca e da Estrada do Itararé durante toda a tarde para a chegada da perícia e a retirada dos cadáveres. De acordo com o relato de três moradores, os corpos foram levados para entrada da favela porque a polícia se recusava a levá-los para a parte de baixo e “porque a comunidade teve receio de os corpos sumirem” e “nada sair na imprensa”.
Ao longo do dia, o número de mortos aumentaria. Primeiro, para oito, às 14h. Duas horas depois, as informações davam conta de nove mortes. Às 18h30, o número subiu para 10. Até que às 23h34 a informação oficial (já relatada por moradores) foi divulgada. No total, foram 13 pessoas mortas durante a operação.
Nenhuma prisão foi efetuada. Os nomes dos mortos não foram divulgados. Apenas, a informação dada pela polícia era a de que ao menos cinco tinham “envolvimento com o tráfico de drogas da região”. Moradores do Complexo do Alemão confirmaram a informação. Mas, numa “megaoperação de inteligência” policial a ordem é matar?
O Complexo do Alemão tem histórico de chacinas...
Ao longo de três décadas, foram ao menos cinco massacres por intervenção do Estado. Em 2007, houve Chacina do Pan, com 19 mortos, oficialmente, em um único dia, durante os Jogos Pan-americanos. O massacre é descrito dentro da comunidade como o dia da “Chacina do Pato” (referência ao tiro ao alvo). Em 1995 e 1994, outras duas matanças haviam acontecido na favela Nova Brasília, com 26 pessoas mortas, sendo 13 em cada uma.
Em 2010, pessoas desapareceram e foram mortas durante a invasão entre o conjunto de favelas da Penha e do Alemão para ação de pacificação. Ao menos, 38 pessoas morreram no confronto na Serra da Misericórdia.
Em 2017, a Corte Interamericana de Direitos Humanos, órgão judicial da Organização dos Estados Americanos (OEA), condenou o Brasil por não garantir justiça no caso das chacinas de 1994 e 1995. Essa é a primeira sentença em que o Brasil foi condenado pela corte da OEA por violência policial.
Parlamentares entram com denúncia na OEA
Renata Souza, deputada estadual do Rio de Janeiro (PSOL), presidente da Comissão de Direitos Humanos e Cidadania da Alerj, juntamente com o deputado federal Marcelo Freixo, do mesmo partido, encaminharam denúncias à Organização das Nações Unidas e à Organização dos Estados Americanos sobre o assassinato do adolescente João Pedro, segunda-feira,18/5. Na denúncia, os parlamentares incluíram também a chacina de 15 de maio, com a morte de 13 pessoas no Complexo do Alemão.
As representações enviadas para Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA, para o Alto Comissariado para Direitos Humanos e para a relatoria Especial sobre Execuções Sumárias da ONU, pedem a responsabilização dos envolvidos no assassinato do menino e, “em especial, a não repetição de violações em favelas e periferias”, reivindica a nota divulgada pela deputada Renata Souza.
Todas as mortes aconteceram em decorrência das megaoperações policiais, que não cessaram nas favelas e periferias mesmo diante da pandemia, como dito acima.
Em 22 de maio, o governador Wilson Witzel, determinou que as polícias Civil e Militar evitem – não está proibido – realizar operações de busca e apreensão ou ações de inteligência, no momento que estiverem acontecendo ações sociais nas favelas.
São quase todos pretos...
Os mortos em operações policiais são praticamente todos pretos. Pretos, pobres e moradores de favelas. No caso, estas mortes não foram ocasionadas pelo novo coronavírus, mas, por outro lado, a gravidade da epidemia também não impediu que a polícia carioca prossiga com suas operações e continue matando. Enquanto isso, as favelas sozinhas se organizam e mobilizam apoio às famílias em situação de vulnerabilidade social, distribuindo cestas básicas, kit de higiene, remédios, apoio psicológico e campanhas de conscientização sobre o Covid-19.
Já o Estado, além de não produzir soluções para favelas, executa operações policiais interrompendo vidas: é a forma concreta de uma política de morte, que revela um racismo estrutural: político, econômico e ideológico. A crise criada pelo vírus do Covid-19 acelerou ainda mais a necropolítica no Rio de Janeiro e escancarou tanto a desigualdade da sociedade brasileira quanto a brutalidade de um Estado autoritário.
#FicarEmCasa nas favelas, isto é, fazer o isolamento físico, não é apenas difícil devido às pobres condições materiais e ausência de infraestrutura: casas pequenas com famílias grandes, saneamento básico praticamente inexistente; a necessidade de trabalhar para aplacar a fome também obriga seus moradores a procurar alguma atividade remunerada. As Marias, as vozes da chacina no Complexo do Alemão, contam que as mortes de pessoas suspeitas da Covid-19 ocorridas em casa se dão por dois motivos: elas não conseguem atendimento médico a tempo de serem socorridas — pois muitas têm sintomas —, e permanecem em casa; e também “porque as pessoas aqui dentro estão morrendo de AVC, infarto, de doença psicossomática, de nervoso” devido à situação de violência. “A pessoa morre do nada em casa. É um acúmulo! Fora as que morrem e a gente não tá identificando se é por corona, porque não tem teste”.
O painel da Clínica da Família Zilda Arns do Complexo do Alemão informa que existem mais de 1.700 casos suspeitos de coronavírus no bairro, além de 1.066 pacientes recuperados.
De acordo com mapeamento do Observatório da Segurança RJ, entre 15 de março e 19 de maio, ocorreram 120 operações policiais, resultando em 69 mortos. Em oito delas, o confronto armado impediu a distribuição de cestas básicas.
No mesmo período, a Polícia Militar do Rio de Janeiro participou de apenas 36 ações de combate ao coronavírus.
(Tatiana faz parte da Rede de Comunicadores do NPC)
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