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Criar um filho preto na favela é sinônimo de medo

Atualizado: 10 de mai. de 2021



O manual de sobrevivência de um favelado é essencial, sem ele não somos capazes de aumentar o nosso tempo de sobrevivência ou, como se diz, nossa esperança de vida.


Hoje venho falar mais uma vez sobre o medo, o medo de uma mãe favelada. Acordar, ou melhor, despertar ao som do famoso besourão (helicóptero da polícia) sobrevoando a favela, é desesperador! Só quem vive em favela entende qual é a sensação...


Minha casa é de telha no segundo andar, onde ficam o meu quarto e o do meu filho. Nós agradecemos todos os dias por termos nosso cantinho aconchegante, mas esquecemos de todo esse aconchego quando chega aos nossos ouvidos o som do medo.


Você já acordou com um rasante de helicóptero sobrevoando a sua casa? Imagine acordar e ouvi-lo por minutos ou horas. É isso aí, durante uma operação policial esse é um barulho frequente para nós. O som é tão alto que chega a estremecer o telhado. A casa parece que vai desabar, e até o nosso corpo aparenta estar tremendo, mesmo que de medo. Tudo treme, e não temos como continuar dormindo.


Lembro que durante a operação mais recente, eu acordei desesperada, assustada, e fui correndo para o quarto do meu filho para chamá-lo. Fomos para o quarto da minha mãe, que fica no andar debaixo da casa. Ficar em um local com laje já nos traz uma falsa sensação

de segurança.


Enquanto tentávamos dormir novamente, meu filho colocou o travesseiro por cima da cabeça com o intuito de amenizar o barulho que incomodava bastante, mas não adiantou. Como mãe, eu me senti na obrigação de colocar a mão sobre o ouvido dele e abraça-lo, para que ele se sentisse seguro. Eu faço isso desde que ele era um bebê.


Infelizmente, para criar um filho na favela é preciso aprender a lidar com a violência de várias formas diferentes, como se ela fosse algo normal. É preciso ensinar que não é sempre que teremos uma noite de sono tranquila, ou que acordaremos sempre na calmaria, pois nada disso é certo.


O medo me consome todos os dias, seja fora ou dentro da favela. Meu filho não sai dela sem estar acompanhado, e por ela anda pouco. Como pode o nosso lugar mais seguro ser ao mesmo tempo o nosso sinônimo de medo? Falar sobre esse medo é necessário; sei que ele não é somente meu. Muitas mães sentem, mas poucas são as que falam a respeito. O medo vive com elas, mas a vida precisa continuar.


“Ser mãe é padecer no paraíso”, sempre vi esse ditado popular como uma verdade, algo que só as mães compreendem, mas isso é ainda mais forte quando se é mãe de filho preto, dentro de uma favela.


Meu filho é criado dentro de casa, cheio de cuidados e, acreditem, isso gera piadas por parte de amigos e vizinhos. Eles observam e julgam. Dizem que sou superprotetora, acham que é uma “frescura”, que meu filho vai ser um “viadinho”, como se isso fosse uma ofensa. Mas não ligo, eu sei das minhas dores e não aceito que os outros palpitem sobre elas.


Yago, hoje com 13 anos, segue sem brincar na rua, passa dia e noite dentro do quarto com seu vídeo game, celular e TV. Sempre que posso interajo com ele, falo sobre fazer o dever de casa, mas a correria nem sempre permite isso.


Eu costumo me sentir culpada por tanta proteção, principalmente quando meu filho me lembra que não pode ter a mesma liberdade que eu tive. Eu cresci brincando na rua, tive um irmão comigo, convivi com pessoas diferentes, soube que existem pessoas ruins, e aprendi com meus erros. Digamos que neste quesito eu fui uma criança “feliz”. Eu podia brincar com os pés descalços, subir em árvores e fazer “amigos reais”.


Meu menino já não pode ter tudo o que eu tive, nunca terá experiência parecida, pelo simples fato de eu não conseguir lidar com o medo e passar por cima dele. Admiro demais a minha mãe por ter criado dois filhos sozinha em uma favela. Ela sempre teve medo, mas nunca deixou transparecer. Ah, como é difícil ser mãe, principalmente nessas circunstâncias!


Sempre que o Yago me cobra por não ter uma infância “normal”, eu explico para ele sobre os meus medos. Ele entende, mas sei que entender não ameniza o que ele sente, e mais uma vez eu me culpo.


Quando penso em polícia, penso que ela é a maior ameaça quando se trata da segurança do meu filho, seja dentro ou fora da favela. Ele precisa saber como agir sempre, em qualquer ambiente, pois por conta de um movimento, ou um objeto a reação pode ser fatal, para ele.


É covarde demais uma criança viver assim, ter uma infância diferente de quem mora fora da favela. Não poder contar com a liberdade, pois essa liberdade pode lhe tirar a vida. O meu sentimento como mãe é de impotência.


Não tem como não ter o medo como aliado, já fui ao enterro de tantos amigos, já vi tantas mães chorando em cima de caixões, e sei que não param por aí.


Durante uma conversa recente com o Yago, falei sobre a morte de uma amiga e de como eu tenho medo de morrer e não o ver crescer. Na mesma hora ele rebateu, “a qualquer momento também pode ser eu, eu sei”. Escutar isso doeu, e os olhos lacrimejaram sem que eu o deixasse perceber.


Eu o crio mostrando toda a realidade sobre a sociedade, falo de racismo abertamente, sobre o genocídio do povo negro e da barbárie que é uma abordagem policial. Eu o crio desta forma para que ele saiba se defender evitando “erros”, mas não queria que isso fosse necessário.


Sigo insistindo que a sociedade precisa compreender e se solidarizar com a dor do povo favelado, enquanto isso não acontecer, a palavra justiça continuará sendo apenas uma palavra no dicionário. Se algo não mudar, nossos meninos e meninas seguirão apenas como números em uma estatística que só mostra crueldade e preconceitos.


Na favela tem muitas pessoas de bem!

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