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Artistas relatam as dificuldades impostas pela pandemia aos seus trabalhos

Surto de Covid-19 afetou a atividade de artistas periféricos, que antes viam nas ruas e nos transportes públicos um palco para suas apresentações.

Imagem: Instagram VG Gang

Por Euro Mascarenhas/NPC


Durante uma viagem de metrô quem nunca teve a rotina quebrada por um show de hip-hop em pleno vagão? Ou então foi surpreendido por inspirados poetas das “quebradas”, com o peito inflado de versos, questionando justamente o nosso dia a dia? Estes artistas que embalavam o percurso de muitos, hoje se veem em uma situação complicada durante a pandemia de coronavírus, já que o tal home-office não é uma coisa tão simples de ser adaptada ao ofício que cumprem.

Muitos deles são oriundos das regiões periféricas do Rio de Janeiro, como é o caso de Slow da BF, que mora na Baixada Fluminense. “Eu vivia na rua fazendo arte e cultura, agora quase tudo o que fazia não posso fazer”, afirma. Entre as muitas coisas que está envolvido, o caxiense é mestre de cerimônias, poeta, escritor, Slammaster, grafiteiro, produtor, oficineiro e cineasta. Sim, a lista é vasta.

João Pedro, o “JP”, também fala sobre como o momento atual afetou o seu trabalho, ele é parte do coletivo de hip-hop VG Gang, que leva toda a experiência do rap, da dança e poesia para os trens e metrôs. Por questão de segurança o grupo não tem feito as suas apresentações, assim os bicos se tornaram a forma de garantir recursos para a sobrevivência, “eu tinha pegado um trabalho lá na Ilha do Governador, longe pra cacete! E tipo, era vários tempos de viagem, chegava lá e trabalhava igual um condenado pra tirar a mesma renda que eu pegava no vagão, tá ligado? Fazendo o que eu gostava pra C#@$*! Me sentindo muito bem, livre, entendeu? E aí, eu tenho que ficar trancado dentro de uma caixa, fazendo um bagulho que eu não gosto por causa dessa situação de agora”.

Arte sempre perseguida e criminalizada


Se é verdade que o contexto destes trabalhadores se deteriorou bastante durante a pandemia, a realidade é que nunca foi fácil para eles irem aonde o povo está. A curiosa história do nome da VG Gang, revela o quanto os estereótipos e marginalização perseguem estes artistas, “um dia desses que a gente estava no ápice, durante uma apresentação no metrô, alguém levantou e chamou a gente de vagabundo. E aí a gente teve a ideia na estação do BRT de criar uma “gangue”, chamada VG Gang. Era Vagabundos Gang, e virou VG Gang”, explica Felipe Henrique, o Fê DuRap, membro do grupo, que também conta com a integrante Maria Clara, codinome Cigana.

Sobre a alcunha de vagabundo, JP rebate, “cansava de sair de casa 6 horas da manhã, chegar no vagão 8 horas, trabalhar até 7 horas da noite e pessoal falar: vai caçar um trabalho! Para de falar merda no vagão!”. Entretanto, para cada pessoa deste tipo, havia muitas outras que apoiavam e celebravam o grupo, “Não é em todo o vagão que a gente entra e tem pessoas com mau humor ou estão indispostas a ver arte, ou ouvir arte. Mas para cada tanto de pessoas que falavam, tinha mais cem que apoiavam, que curtiam. Pessoas que levantavam e vinham até nós chorando, falando que era a palavra que elas precisavam ouvir. Este era o incentivo que a gente tinha para continuar”, afirma Fêh DuRap.

Ainda em junho de 2019, a Justiça do Rio de Janeiro decretou a proibição de apresentações artísticas em estações e vagões de trem, metrô ou barcas. A decisão considerou inconstitucional a lei que possibilitava as manifestações culturais nestes espaços.

Mesmo impossibilitado de trabalhar no mesmo ritmo que antes, Slow da BF procura manter-se ativo de alguma forma e também buscando alternativas de fazer arte, “tenho feito músicas e poesias, além de entrar em editais e projetos virtuais”. Recentemente ele participou do projeto Poema em Pé, divulgado em plataforma digital, uma espécie de batalha de poesias (slam poetry) onde apenas versos autorais são permitidos e quem julga é o público.



Além das apresentações nos trens e metrôs estarem paradas, uma outra parte do trabalho da VG Gang também ficou estagnada, a ida em escolas e a roda de cultura que realizavam em Triagem, bairro da Zona Norte do Rio. A atuação nas instituições de ensino ocorria no período final do ano, “a gente faz oficinas de poesia e um pequeno workshop de dança, e no final, a gente organiza um pequeno sarau para a criançada tentar recitar o que eles conseguiram criar com as ideias que a gente passou. E às vezes tem umas surpresas aí, que a gente acha uns poetas escondidos”, explica Fêh DuRap.

Apesar de serem de Duque de Caxias, o grupo foi adotado pela comunidade de Triagem, desta relação surgiu a roda de cultura, que também é uma forma de resistência contra a violência policial que assola a população do bairro, “a gente não colocou na Baixada porque aqui não tem incentivo nenhum. Lá também não tinha incentivo, mas pelo menos os moradores abraçaram a gente”, afirma JP.

O estopim para o início do projeto foi o assassinato da menina Ágatha Vitória Sales Félix pela PM, em 20 de setembro de 2019, quando estava dentro de uma Kombi voltando para a casa com a mãe. “A gente conhece a mãe dela e passava em frente à casa dela todo dia”, declara Fêh DuRap. O projeto começou como uma homenagem, parou no carnaval e depois com o início da pandemia não voltou mais.

Entre um bico e outro para conseguir manter a renda, o grupo também tenta manter a criatividade ativa. Fêh DuRap, por exemplo, tem investido no aprendizado de ser beatmaker, “ele é o cara que faz a batida para o MC rimar, e no meu caso, eu estou com o intuito de abrir o meu estúdio para a gente gravar as nossas músicas sem precisar se preocupar em pagar”.

Mobilização e leis emergenciais


Em junho deste ano foi aprovada a Lei Aldir Blanc (PL 1075/2020), ela destina 3 bilhões de reais para o setor cultural, e visa socorrer artistas e demais trabalhadores da cadeia produtiva da cultura em tempos de pandemia. O valor sairá do superávit do Fundo Nacional de Cultura de 2019, sem mexer em nenhum outro orçamento do Estado. A autora da lei foi a deputada federal Benedita da Silva (PT), e teve a relatoria da deputada federal Jandira Feghali (PC do B).

Max Medeiros é produtor cultural, mistura literatura com artes cênicas, e também ajudou a lançar o projeto Poema em Pé. Fixado na cidade de Casimiro de Abreu, interior do Rio, nos últimos meses esteve muito envolvido na formação do Fórum Permanente de Cultura, que ajudou a mobilizar os trabalhadores da cultura locais entorno da aprovação da Aldir Blanc. “O texto da lei foi escrito de modo participativo, ouvindo o setor e isso foi muito importante”, comenta.

Com a impossibilidade de acontecer aglomerações, as reuniões ocorreram via vídeo chamadas. Comissões foram formadas no nível nacional e regional. “Como a gente estava nesse estado parado de alerta, e surgiu uma proposta de uma lei que pudesse nos atender, mais artistas começaram a se envolver com essa articulação política. Por isso eu falo que esse é um dos maiores legados da lei, ela está conseguindo impulsionar a estrutura de um sistema nacional de cultura, mesmo dentro de um contexto bolsonarista. É como construir um oásis no deserto”, declara Max.

Fêh DuRap e JP temem que o fato de muitos artistas de rua não terem o registro profissional da área, não consigam acessar a lei, “qual artista de rua que tem DRT? Não conheço muito. A rapaziada não tem acesso a essas paradas, a gente não tem tempo”, comenta JP. Fêh DuRap complementa, “falta informação também”.

Mas de acordo com a explicação de Max, os membros da VG Gang não precisam temer. O primeiro inciso da lei estende o benefício para além de atores ou produtores, “ela amplia o que você entende como agente cultural. Agente cultural é todo mundo envolvido nessa cadeia. O pipoqueiro é um agente cultural”, afirma Max.

Entretanto, o maior ineditismo está no segundo inciso onde está previsto o auxílio para espaços culturais, “a lei diz que espaços culturais são: instituições culturais, coletivos culturais, organizações culturais formais e informais. Na prática a gente está falando de quê? Aquela associação cultural que não tem um CNPJ, ela é um espaço cultural? É. A roda de capoeira na praça que não tem um registro formal, ela é um espaço cultural? É”, explica Max.

Estes espaços podem comprovar a existência de suas atividades por meio de portfólios; validação por pares, instrumento usado no antigo projeto Cultura Viva, quando demais espaços culturais de uma região atestam que um grupo local está ativo; e em último caso: a auto declaração.

Outra medida que foi aprovada como socorro aos artistas foi a SOS Cultura Carioca (PL 1821/2020), no dia 6 de agosto. Uma lei voltada para o município do Rio de Janeiro que prevê novos editais de fomento, assegura a manutenção de contratos em vigor e o pagamento dos que já foram aprovados.

O vereador Tarcísio Motta (Psol), que protocolou o projeto em maio, vê a lei como uma forma de garantir o funcionamento das lonas e arenas culturais, garantindo o emprego de quem trabalha nestes espaços. “Muitos repetem que o Rio é a capital cultural do país e, para isso, é fundamental que a Prefeitura tenha políticas públicas para o setor”, comenta.

A aprovação da lei também contou com uma grande mobilização dos trabalhadores da cultura da cidade, mais de 130 coletivos e 3.300 pessoas assinaram a petição que pedia a aprovação urgente da PL, que teve 37 votos a favor. Tarcísio salienta a importância que os artistas têm tido neste período pandêmico, “para muitos de nós, a quarentena é aliviada pela produção dos trabalhadores da cultura. Mas milhares de trabalhadores desse setor, apesar de sua importância neste momento, ficaram sem o seu sustento de uma hora para outra”.

Apesar da ampla articulação em prol destes projetos de lei, alguns ainda enxergam um horizonte negativo para o futuro da cultura. Slow da BF acompanhou as discussões da Aldir Blanc em Caxias, perguntado sobre as perspectivas que tinha sobre o setor, ele responde, “a cultura jamais será a mesma. Vai ser impossível resgatar tudo o que perdemos neste período. Em Caxias os poderes não querem nem saber de cultura”.

Max destaca o poder da união de classe, “quando a classe se organiza você consegue construir esse oásis no meio do nada”. E também brinca com o nome da Lei Aldir Blanc, “ela é de duplo sentido, ela é Lei de Emergência Cultural Aldir Blanc. Emergência tanto da urgência do momento, mas também no sentido de fazer a cultura emergir no país”, completa.


[Euro Mascarenhas faz parte da Rede de Comunicadores do NPC]

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