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"Aqui é nós pelos nossos”

Jovens formam coletivos para frear a pandemia do coronavírus nas favelas do Rio.

Manhã do dia 25 de março, sábado, um carro de som desfila sobre as ruas tortuosas das periferias de Santa Cruz, na Zona Oeste do Rio, onde o sol é mais quente que em qualquer outro ponto da cidade. A picape vermelha percorre oito bairros da região, cruza com aglomerações e atrai ouvintes para anunciar a chegada de um novo inimigo comum: o novo coronavírus. “Acredite: a situação é muito grave e pode matar milhares de pessoas, principalmente em periferias como as nossas. Esse vírus mata. Não é só uma gripezinha”, alerta a voz feminina em alto e bom som.


Desde que o COVID-19 desembarcou no Rio, jovens começaram a se mobilizar para tentar frear os efeitos da pandemia nas periferias. Com a desigualdade social no acesso ao sistema de saúde, na falta de saneamento básico e condições precárias de moradia, as comunidades se tornaram rapidamente mais vulneráveis à doença. Para proteger a saúde e a integridade de vizinhos e familiares, novos coletivos ocuparam as periferias da Zona Oeste e da Baixada Fluminense. Naquele sábado de sol, o megafone também anunciou uma segunda mensagem: agora é nós pelos nossos.


Juntos pela Zona Oeste


Noextremo esquerdo do mapa carioca, oito coletivos de Paciência, Santa Cruz e Sepetiba se juntaram para criar a União Coletiva pela Zona Oeste. Cada um desses grupos iniciou campanhas de conscientização para alertar suas comunidades sobre a doença que aos poucos chegava à Zona Oeste carioca. As inciativas estavam ganhando força quando o governador Wilson Witzel decretou as primeiras medidas de isolamento social do Rio, em 13 de março. As crianças ficaram longe dos refeitórios escolares, o movimento nas ruas reduziu para trabalhadores informais e o auxílio emergencial não tinha nem previsão de quando seria aprovado. As geladeiras e as despensas esvaziaram e a União Coletiva se deparou com um novo desafio: a fome. O grupo atua em dez comunidades: Conjunto Cesarão, Ocupação Jesuítas, Favela do Aço, Urucânia, Complexo João XXIII, Nova Sepetiba, Portelinha , Conjunto Santa Veridiana, Favela do Rolas e Antares. Nos bairros em que há dados disponíveis para consulta, a taxa de pessoas vulneráveis à pobreza é maior que a média nacional. Os números são do Atlas do Desenvolvimento Humano no Brasil.



Os números escancaram a realidade, mas não surpreendem quem cresceu nas ruas de Santa Cruz. “A gente conhece essas famílias, tomamos café nas casas delas. Às vezes compartilhamos dos mesmos problemas. O trabalho é de nós para os nossos”, conta Wanessa Afonso, estudante de 24 anos que integra a União. Esses laços foram fundamentais para a continuidade do trabalho. Os coletivos realizaram um mapeamento com as famílias em situação de vulnerabilidade social a partir dos dados que já tinham. A Plataforma Casa, por exemplo, tem cadastros de crianças da Favela do Aço; o Coletivo Martha Trindade trabalha com moradores e pescadores que foram afetados pelo vazamento de uma companhia siderúrgica em 2010. O boca-a-boca também ajudou: “A gente foi perguntando: ‘Olha, você sabe alguém que tá precisando de alguma ajuda?’, e as pessoas iam indicando”, contou Wanessa. Até o final de março, o mapa já reunia 2.000 famílias e 1.097 delas tiveram as despensas abastecidas.


De onde chega a ajuda


Antes de montar e distribuir as cestas básicas, com alimentos e itens de higiene pessoal, o grupo precisou buscar uma rede de colaboradores dispostos a financiar o projeto e realizaram uma campanha de arrecadação na internet. “Nossa estratégia é acompanhar como prioridade as famílias que por diversas razões não conseguiram apoio emergencial do governo”, diz a página da campanha. O apoio continua chegando de pessoas físicas e ONGs, mas nenhum dinheiro tem saído dos cofres públicos. A União Coletiva preferiu não recorrer ao governo porque, segundo a organização, “naturalmente, a região já é negligenciada e, no cenário da pandemia, a tendência seria piorar”.


A Prefeitura do Rio não embarcou nos trens do Ramal Santa Cruz — nem em ônibus, vans ou carros — para frear a crise na ZO. A Secretaria Municipal de Assistência Social e Direitos Humanos (SMASDH) encomendou 20 mil cestas básicas, que começaram a ser distribuídas no dia 25 de março para famílias vulneráveias, mas nenhuma chegou às periferias mais pobres de Paciência, Santa Cruz ou Sepetiba. A Companhia Municipal de Limpeza Urbana (COMLURB), que tem higienizado as principais vias de acesso às favelas da cidade, só apareceu uma vez, no Antares. A ajuda da Prefeitura tem chegado apenas com os Cartões Cesta Básica, que disponibilizam R$100,00 para as famílias de alunos da rede municipal de ensino. Mas o auxílio não beneficia todos os moradores: as mães que têm crianças de colo e que estão fora das escolas, por exemplo, não recebem. No CREAS de Sepetiba, os funcionários distribuem kits de higiene pessoal e fazem orientações sobre os cadastros para solicitar o auxílio emergencial disponibilizado pelo Governo Federal. Em nota, a Secretaria Municipal de Assistência Social e Direitos Humanos afirmou que “as equipes fazem diariamente abordagens sociais na região ofertando acolhimento, encaminhamento para retirada de documentos, para tratamento de saúde, entre outras ações”. A Prefeitura não comentou sobre as cestas básicas.


A negligência das autoridades provoca um efeito colateral que pode agravar a pandemia: sem fiscalização ou campanhas intensificadas de conscientização, alguns moradores têm demorado a adotar as medidas de isolamento social. Santa Cruz é um dos bairros com mais casos de denúncias no ‘Disk Aglomeração’, segundo levantamento do Centro de Operações Rio (COR). Ainda assim, há noites em que o pagode e o funk tocam nos bailes até o amanhecer. A atuação da milícia na região, com a organização de eventos e o incentivo à abertura dos comércios, também torna mais difícil o controle das multidões. Na última quinta-feira (06), o prefeito Marcelo Crivella disse que pode determinar a qualquer momento o lockdown em bairros da Zona Oeste, incluindo Santa Cruz. Para manter as comunidades em alerta, os coletivos investem nas conversas durante as doações nas ruas e faz postagens diárias nas redes sociais. No Cesarão, os pequenos ganharam uma campanha própria: o Criança Contra o Corona. Professores, jovens lideranças e coletivos da comunidade Cesarão têm recebido doações para confeccionar máscaras e comprar sabonetes para manter os menores protegidos. “É uma campanha feita por amigos, jovens da comunidade, para deixar nossa geração segura”, conta Kawan Lopes, criador da ação e membro da União Coletiva.


Mas o que fez os moradores das comunidades acreditarem de vez no perigo da pandemia foi a morte de familiares e vizinhos. Wanessa explica: “Falar para uma pessoa inserida em um contexto de tiroteio e fome que vai chegar uma doença contagiosa e fatal não causa o mesmo impacto causado nas pessoas privilegiadas. A gente fala: ‘Olha, diminui o risco se você lavar as mãos’, mas elas continuam ameaçadas por outros problemas sociais. O entendimento só chegou quando os nossos começaram a morrer”.


A escalada dos números ameaça a saúde da equipe e a continuidade do trabalho da União Coletiva. Até o fechamento da matéria, a taxa de letalidade do Coronavírus era três vezes maior em Paciência, Santa Cruz e Sepetiba que em Copacabana, bairro que lidera o número de casos na cidade.


O hip-hop unido por Morro Agudo


“Teve gente que recebeu a cesta e agradeceu a situação atual, justamente por estar há muito tempo sem comer. Comentam: ‘Pelo menos esse vírus fez as pessoas olharem para gente que está precisando e estão podendo ajudar’. Quando surgiu essa oportunidade, eu aceitei logo de cara. O hip-hop é sobre solidariedade, é o que a gente prega através da arte”, revela Luiz Gustavo Oguano, conhecido como Baltar, 25 anos.


O jovem integra o Instituto Enraizados, uma organização que conecta as pessoas através da arte, da cultura e busca reduzir as desigualdades sociais. Os artistas de hip-hop da instituição criaram o coletivo “Solidariedade BXD” para realizar ações de solidariedade em Nova Iguaçu, em bairros como Morro Agudo e arredores. Recentemente, o grupo se juntou à campanha “Rio Contra Corona”. Conduzida por Instituto Phi, Banco da Providência e Instituto Ekloss, com articulação do movimento União Rio, a iniciativa tem o objetivo de reduzir os impactos da crise através da distribuição de cestas básicas e kits de higiene pessoal às famílias em situação de maior vulnerabilidade.


Dudu, de Morro Agudo, diretor-executivo do Instituto Enraizados, explica que, no primeiro momento, a iniciativa surgiu com a necessidade dos artistas do instituto, já que muitos perderam suas principais fontes de renda com as medidas de isolamento social. O organizador entrou em contato com amigos e ficou surpreso com o grande retorno. “Eu tentei conseguir uma média de 30 cestas básicas e consegui logo de primeira 300, e daí eu falei ‘vou doar para os amigos dos amigos do Enraizados, as pessoas mais próximas da instituição’”, conta.


Para evitar aglomerações no Instituto durante o mapeamento das famílias, os integrantes do coletivo resolveram criar um site que possibilita o cadastramento online. O foco são os artistas de rua e pessoas em vulnerabilidade econômica e social. As ações contam com carros, voluntários e pontos de coleta. Até agora, 1.300 cestas básicas já foram entregues e mais 1.000 estão na fila de espera. O coronavírus intensificou, mas não foi o único causador da crise social que atinge Morro Agudo. Durante as ações, os integrantes do projeto se aproximaram de realidades extremas. “Quando se diz vulnerabilidade social, a gente imagina uma série de coisas. Mas eu presenciei, eu vi uma pobreza muito aguda e alguns casos de miséria aqui no meu bairro”, conta Dudu.


Por meio das redes sociais, o grupo republica e comenta as ações e pronunciamentos oficiais do prefeito do município diariamente. Para enfrentar a crise, a prefeitura começou a distribuir 65 mil cestas básicas para alunos da rede municipal desde 22 de abril, e já contemplou os bairros de Austin, Miguel Couto, Vila de Cava e Tinguá. Além disso, a prefeitura está entregando máscaras de pano, produzidas pelos Centros de Referência da Assistência Social (CRAS), Espaço Municipal da Terceira Idade (ESMUTI) e órgãos ligados à Secretaria Municipal de Assistência Social (SEMAS). Segundo o site oficial da prefeitura, cerca de 400 máscaras já foram distribuídas e mais de 600 serão entregues à população.

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