Movimentos comunitários das favelas lançam campanha internacional e tentam aplacar a fome na ausência do poder público.
Após dez meses do seu lançamento, o Painel Unificador Covid-19 nas Favelas, iniciativa colaborativa de produção de dados sobre o alcance da Covid-19 nas favelas, junto com à Rede Favela Sustentável*, reuniu em sua quarta coletiva de imprensa. Lideranças comunitárias denunciaram a falta de políticas públicas de combate ao coronavírus nos âmbitos municipal, estadual e federal. O Brasil vive o segundo maior índice de mortes e infectados por Covid-19, com mais de 423.000 mortos e 15 milhões de casos desde março de 2020. Na coletiva de imprensa “Um Ano de Derrotas! Qual é a solução?”, realizada no último dia 29 de abril, 15 lideranças comunitárias pediram apoio da sociedade e comunidade internacional enquanto expuseram como as favelas vêm enfrentando, sem apoio das autoridades, a morte por coronavírus e a fome.
“Muito mais do que um discurso emotivo, porque tive vontade de chorar aqui várias vezes, eu quero trazer um discurso racional sobre o que está acontecendo nas comunidades agora. Uma ajuda de emergência no valor de R$150 ou R$350 [valor do auxílio emergencial pago pelo governo brasileiro] para uma família de 4 a 5 pessoas não dura nem uma semana. Somos forçados a nos reprogramar sem qualquer estrutura através de uma economia circular para nos alimentarmos com dignidade. É muito difícil enfrentar essa situação com um governo apático à tragédia social que está acontecendo.” — Anna Paula de Albuquerque Sales, Associação de Mulheres de Itaguaí Guerreiras e Articuladoras Sociais (A.M.I.G.A.S.)
Insegurança alimentar é quando alguém não tem acesso pleno à alimentação. Hoje, em meio à pandemia, mais da metade da população brasileira está em situação de fome. Além disso, existe o nutricídio, que é quando “as pessoas são forçadas a comprar alimentos auto processados, o que gera problemas a longo prazo, como diabetes e doenças cardiovasculares”, explicou Andressa Cabral, da Maré de Notícias, ressaltando a vulnerabilidade nutricional que muitos moradores, mesmo que comam e matem a fome, estão expostos.
O Brasil havia deixado o Mapa da Fome da ONU em 2013, quando apenas 3,6% dos brasileiros estavam em situação de insegurança alimentar grave, mas voltou em 2018, com o retorno de 5% da população no patamar de insegurança alimentar grave. Com a pandemia, segundo o Inquérito Nacional sobre Segurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil, da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar, 9% da população está passando fome, isto é, 19 milhões de brasileiros.
Já em levantamento realizado entre novembro e dezembro feito por pesquisadores do grupo “Alimento para Justiça” da Universidade Livre de Berlim, em parceria com a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e a Universidade de Brasília (UnB), mostrou um aumento da fome ainda maior: 15% da população brasileira está em insegurança alimentar grave, e 12,7% em insegurança alimentar moderada, o que significa que corriam o risco de deixar de comer por falta de dinheiro.
Os movimentos comunitários das favelas na coletiva do dia 29, e inúmeros outros, confirmam o aumento da fome e lutam para diminuí-la frente a falta de resposta do governo.
“As doações estão cada vez mais difíceis, não estamos conseguindo arrecadar. Uma mãe hoje veio me procurar para pedir uma cesta básica e eu não tinha para dar. Só pude dar alguns produtos. As pessoas estão distribuindo os filhos nas casas das pessoas, porque não tem nada em casa com o qual se alimentar. Conversei com um menino com menos de 12 anos e perguntei porque ele andava sumido. Ele me disse que está trabalhando num lava-jato e que estava dormindo lá.” — Diocélia Galvão, Projeto Semeando o Amor de Cristo, Pavuna
Nas favelas, uma pesquisa do Instituto Data Favela mostra que 68% dos moradores não tiveram dinheiro para comprar comida em ao menos um dia nas duas semanas anteriores ao levantamento.
“As favelas vivem na luta e no luto desde que nasceram. Estamos sendo segregados e não temos garantias de direitos sociais. Aqueles que mais morrem na pandemia são pobres, favelados e negros. Aqui na Cidade de Deus uma pessoa morre todos os dias e já temos um total de 142 óbitos. A gente fez uma ação em que ninguém [da mídia] apareceu para fazer a denúncia que estava morrendo uma pessoa por dia aqui. Um abandono total.” — Iara de Oliveira, Alfazendo, Cidade de Deus
A ausência de ajuda emergencial e o atual desemprego estrutural limitam a capacidade de ajuda das organizações. “A política do governo é uma política de contramão, cruel e genocida, que não só torna a recuperação impossível, mas parece estar tentando fazer o oposto”, opina Douglas Heliodoro, do Coletivo Conexões Periféricas, em Rio das Pedras.
Fome e Desemprego
O governo lançou ano passado um benefício financeiro para fornecer proteção emergencial no período de enfrentamento à crise causada pela pandemia do coronavírus. Porém, desde o começo, o valor de R$600 foi considerado baixo frente a necessidade das famílias e o aumento de preços dos alimentos em meio a crise da pandemia. Por três meses, entre janeiro e março, o governo federal parou de pagar o auxílio e as famílias ficaram completamente desassistidas. O desemprego atinge 14,4 milhões de brasileiros, maior contingente desde 2012.
Em março, o governo aprovou a retomada do pagamento do auxílio, mas com um valor ainda mais baixo: R$150 a R$375. Segundo o Dieese, em 12 meses, ou seja, ao comparar o valor em março de 2020 e março de 2021, o preço do conjunto de alimentos básicos teve aumento em todas as capitais brasileiras. O preço médio de uma cesta básica no Rio de Janeiro é de R$ 612,56.
Desde o início da pandemia, as instituições comunitárias foram forçadas a intensificar as ações e aumentar exponencialmente os esforços, assumindo o papel do poder público. “O que está acontecendo é inacreditável. Nós, como sociedade civil, estamos fazendo parte do governo e estamos pagando um preço muito alto pela ausência de políticas públicas”, diz Ana Leila Gonçalves, do Centro Social de Fusão, em Mesquita.
Para os movimentos sociais comunitários, a política de morte destinada às favelas é explícita e opera um xadrez macabro: ou se morre de Covid-19, fome ou de tiros, uma vez que as operações policiais não cessaram nas comunidades, mesmo em meio à pandemia.
“Com essa pandemia, a gente teve que se virar para conseguir atender as pessoas, ir atrás de legumes, verduras. A gente se viu na obrigação a não deixar que essas pessoas voltassem sem atendimento. Na busca por atender essas famílias, a gente vai entrando em outras áreas, em outras comunidades e a gente vê a precariedade de serviço. Eu não diria nem precariedade de serviço, eu digo inexistência de serviços”, denuncia Cleide Jane, que atua na Associação Missão Resplandecer (AMIRES), em Duque de Caxias, na Baixada Fluminense, que atende pessoas que convivem com HIV.
Para Cleide Jane, o movimento comunitário não teve opção de se isolar ou permanecer em casa pois, “quando muitos fecharam as portas”, os ativistas locais “permaneceram com as portas abertas”, senão “as pessoas morriam de fome, não de Covid”. E desabafa: “Não sei quando as lideranças comunitárias serão incluídas na linha de prioridade para vacinação, porque precisam”.
Em janeiro, 21 coletivos do Painel Unificador e de outras 27 organizações chamaram atenção para a necessidade urgente de vacinar a população das favelas. Inclusive, para combater a fome. Na carta “Vacina da Favela, Já!”, registram depoimentos críticos sobre os efeitos colaterais da crise sanitária e econômica da pandemia nas favelas da Região Metropolitana do Rio.
Kádina Bastos, do Coletivo Fazendo Mágica com Tecido, afirma que a única solução é a vacina: “Chego a sentir um engasgo ao falar. Tenho recebido pedidos de cesta básica também, mas o baque maior foi ter perdido no final do ano passado uma costureira quando ela veio a óbito por Covid. Foi muito rápido. Se a vacina tivesse chegado na hora que era para chegar, ano passado, quem sabe, tanto ela quanto muitos outros não estariam conosco?”
A imunização no Brasil segue lenta. Até o momento apenas idosos foram vacinados e, em algumas cidades do país, recentemente começou a vacinação de pessoas com comorbidades. O balanço da vacinação contra o coronavírus divulgado pelas secretárias de saúde na sexta-feira (7/5), aponta que 34.914.631 pessoas já receberam a primeira dose de vacina contra a Covid-19. O número representa 16,49% da população brasileira. Porém, somente 8,3% da população já recebeu a segunda dose e está completamente imunizada. No Rio de Janeiro, no total, 2.450.422 pessoas foram vacinadas com a primeira dose, o que representa 14,11% da população do estado, de acordo com o mapa de vacinação do portal G1.
De acordo com as lideranças comunitárias, além da morte por Covid-19 e da violência da fome, moradores das favelas do Rio de Janeiro também têm dificuldade de enterrar parentes mortos pelo coronavírus ou de viver o luto com dignidade. “Há um grande número de subnotificações nos enterros, principalmente de comunidades pobres, em função primeiro da questão da segurança sanitária, dos protocolos para evitar contaminação. Mas acontece que também, as pessoas dessas comunidades não estão conseguindo localizar os seus entes que morreram, que foram enterrados de uma forma desorganizada, de uma forma descontrolada, sem nenhum tipo de monitoramento ou fiscalização dos órgão como a Santa Casa de Misericórdia, que é uma das entidades que gerencia esses processos dos enterros”, relatou Fabio Leon, jornalista do Fórum Grita Baixada.
Dados Participativos
O PUF, como é chamado pelos integrantes do Painel Unificador Covid-19 nas Favelas, foi criado a partir da ausência de dados sobre a Covid-19 nos territórios. O Painel é realizado através de uma metodologia altamente participativa que, na falta de testagem em massa, compreende que as informações oriundas de uma base local qualificada são as que se aproximam mais da realidade.
A partir de fontes locais, o Painel começou a montar sua base de dados em julho de 2020 e a cada semana vem adicionando novas fontes. Mais recentemente, optou-se por uma metodologia de Zona de Influência de Códigos de Endereços Postais (CEPs), identificando os que melhor representam áreas de favela. A partir de dados por CEP, o Painel conseguiu captar dados de 268 favelas, sendo seis em municípios vizinhos, em especial Itaguaí.
“A coleta de dados realizada por este painel, reunindo fontes públicas e comunitárias, contribui para um diagnóstico mais próximo da realidade, já que a falta de dados fornecidos pela prefeitura torna ainda mais difícil fornecer informações fundamentais para a avaliação da situação… A dificuldade de acesso à saúde, os endereços mais difíceis de georreferenciar, são fatores que contribuem para uma maior letalidade nos bairros com mais favelas”, explica Renata Gracie, vice-coordenadora do Laboratório de Informação em Saúde da Fiocruz.
Já ocorreram mais mortes nas favelas do Rio de Janeiro do que em 164 países. Hoje, 11 de maio, o painel reporta 44.996 casos e 4.702 óbitos nas favelas da região metropolitana. O Painel Unificador atualmente cobre 66% dos domicílios das favelas na cidade do Rio.
As desigualdades sociais crônicas das favelas, como a falta de saneamento básico, de água potável, a lotação e a precariedade das unidades de saúde nestes territórios, a realidade da violência e de incursões policiais, além da fome, têm potencializado os casos de infecção e óbitos por coronavírus nas favelas do Rio de Janeiro. Ou seja, enquanto a pandemia ampliou e agravou ainda mais o quadro de desigualdades sociais, as desigualdades sociais nas favelas aprofundaram a pandemia nos territórios.
“As pessoas ficaram chocadas porque não podíamos nem comprar álcool em gel por causa do alto preço causado pelo aumento da demanda [pelo produto].” — Geiza de Andrade, educadora socioambiental da Vila Kennedy
Assista a coletiva de imprensa na íntegra aqui:
*A Rede Favela Sustentável (RFS), o Painel Unificador Covid-19 nas Favelas e o RioOnWatch são projetos da Comunidades Catalisadoras.
Este artigo foi escrito por Gabriela Buffon Vargas, Pilar Boyero, Tatiana Lima, e publicado em 11/05/2021.
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